VIAGEM AO CORAÇÃO DAS TREVAS de Nuno Faria

OS RECURSOS DO MÉTODO DE PEDRO VALDEZ CARDOSO de João Pinharanda

AD GLORIAM EPHEMERAM de João Pinharanda

SIGHTSEEING de Bruno Leitão


À LA CARTE de Bruno Leitão


OBJECTOS QUEER de José António Fernandes Dias

ENTREVISTA (CROSS-CULTURAL) de Lúcia Marques

QUARTO SEM VISTA de João Miguel Fernandes Jorge


O PESO DA HISTÓRIA@MNSR de Fátima Lambert


UMA CONVERSA CRUA de Hugo Dinis


MUNDOS INQUIETANTES de Xosé M. Buxán Bran


THE ORDER OF TODAY IS
THE DISORDER OF TOMORROW de Luísa Soares de Oliveira


CRUDE de Filipa Oliveira


MEMÓRIAS DOS ACTOS de Sandra Vieira Jürgens

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VIAGEM AO CORAÇÃO DAS TREVAS

"Subir aquele rio foi como retroceder no tempo até aos primórdios do mundo, quando a vegetação devassava a Terra e as grandes árvores eram rainhas. Um curso de água deserto, um silêncio absoluto, uma floresta impenetrável. O ar era quente, espesso, pesado, indolente. Não havia alegria no esplendor do Sol. Os longos troços ermos da via fluvial perdiam-se na bruma das lonjuras mergulhadas em sombra. Nos bancos da areia prateada, hipopótamos e crocodilos desfrutavam o sol lado a lado. As águas espraiavam-se e corriam por entre uma profusão de ilhas arborizadas. Perdíamo-nos naquele rio como um deserto, embatendo em baixios o dia inteiro na tentativa de encontrar o canal navegável, até nos julgarmos presas de um feitiço e para sempre afastados de tudo o que um dia conhecemos, algures, muito longe, talvez numa outra vida".

Joseph Conrad, Coração das Trevas

           The Devil's Breath é um projecto singular, construído em três tomos como uma narrativa literária, estendido no tempo e fragmentado no espaço, em que os elementos se combinam como ecos de uma realidade sobrevivida, em estado de hipérbole.
É uma história cheia de paradoxos, feita de visões e de decapitações, em permanente adensamento, sempre em território de fronteira, no limite da visibilidade.

           Combina elementos pleonásticos, figuras alegóricas, personagens que vivem e vêm da escuridão, que fascinam e assombram, que não têm limites definidos, nem moralmente, nem fisicamente. São figuras da ambiguidade, omnipresentes e difusas, que escondem e revelam, simultaneamente, arquétipos que fazem parte do nosso imaginário mais enraizado e inconsciente.

           Este pequeno breviário de grandes medos ou fixações - o Diabo, a máscara, a cabeça destacada do corpo, a floresta, o caçador, numa palavra, a alteridade - é o vocabulário que Pedro Valdez Cardoso (PVC) articula (com mais propriedade diríamos: costura, como pontos de uma cicatriz). Os elementos aparecem e reaparecem em diferentes lugares e momentos da narrativa, como ecos ou aparições, mortes repercutidas e diferidas, zonas de sombra, personificações do interdito, materializações do inconsciente, emblemas, cenários, palcos, totens. 

           Cada vocabulário tem a sua gramática e aquela que escolheu PVC combina os elementos numa lógica metanarrativa, de "história dentro da história", a partir da modelação de anacronismos e enquanto sequência de discontinuidades.
Abordamos as três instalações que compõem a narrativa como se chegássemos demasiado tarde, como se fossem acampamentos militares anteriormente levantados ou destruídos, campos arqueológicos em espera, armadilhas anteriormente espoletadas. São lugares de desolação, para lá do limiar, para lá do fim. O que vemos são despojos de um mundo em desagregação cujos códigos de leitura provêm de diferentes campos disciplinares, como a arqueologia, a arte da guerra, a equitação, a gramática do poder, as políticas de género e de sexualidade, os estudos pós-coloniais, para citar somente os mais importantes.

           Com efeito, o cenário principal parece ser o das ruínas do pós-colonialismo, em que uma parte considerável do mundo tem dificuldades em pensar-se a si própria, vive em constante auto-análise, procurando a origem do diverso como lugar do recalcamento e do trauma.
Aqui, vagueamos sempre dentro da floresta, sem horizonte, sem possibilidade de reflexão, sem razão e distância, confrontados sempre com corpos decepados, fragmentados, símbolos de uma geometria que se desfez progressiva e imperceptivelmente numa multiplicidade de referências e de pontos de vista, num jogo de espelhos deformador da realidade.

           O que realmente interessa a PVC é aquilo que está nas entrelinhas, o que não se lê ou diz mas é demasiado perceptível. Interessam-lhe os mecanismos de controlo, as relações de poder, a subjugação permanente, ainda que subversiva, do outro.

           O efeito de paralaxe em que frequentemente vivem as suas peças é a pedra de toque de um discurso que se constrói sobre uma lógica de intervalo, de lacuna e de antecipação - o pré-conceito como dispositivo. Interessa-lhe, basicamente, a forma de contar, a história e os elementos no seu interior, por esta ordem.

           O que parece estar sempre em cena, ou em causa, é o corpo, em rigor o único barómetro mensurável, o único lugar comum e último reduto da individualidade e da diferença - o lugar de todas as formas de dominação. A natureza, a animalidade, a caça, a guerra, são, finalmente, formas de (des)figuração de um medo original, de uma dobra escondida: o outro em nós.

 

Nuno Faria
Fevereiro de 2014

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