VIAGEM AO CORAÇÃO DAS TREVAS de Nuno Faria

OS RECURSOS DO MÉTODO DE PEDRO VALDEZ CARDOSO de João Pinharanda

AD GLORIAM EPHEMERAM de João Pinharanda

SIGHTSEEING de Bruno Leitão

À LA CARTE de Bruno Leitão

OBJECTOS QUEER de José António Fernandes Dias

ENTREVISTA (CROSS-CULTURAL) de Lúcia Marques

QUARTO SEM VISTA de João Miguel Fernandes Jorge


O PESO DA HISTÓRIA@MNSR de Fátima Lambert


UMA CONVERSA CRUA de Hugo Dinis


MUNDOS INQUIETANTES de Xosé M. Buxán Bran

THE ORDER OF TODAY IS
THE DISORDER OF TOMORROW de Luísa Soares de Oliveira


CRUDE de Filipa Oliveira


MEMÓRIAS DOS ACTOS de Sandra Vieira Jürgens


_________________________________________________________________________________________________________________________________


OBJECTOS QUEER

           Para alguém que, (como eu,) seguiu e participou dos debates sobre a qualidade artística ou não dos objectos dos povos colonizados e conquistados, sobre os seus usos e significados nas suas sociedades de origem, as suas aventuras nas metrópoles coloniais e pós-coloniais, e as relações que com eles estabelecem os artistas contemporâneos dos países que se tornaram independentes a partir da segunda metade do século XX, os trabalhos de Pedro Valdez Cardoso apresentados no espaço Artecontempo em Lisboa, entre Abril e Junho deste ano de 2011, em Cross-Cultural (works on flatness, dominion and erasing) são no mínimo desconcertantes e provocadores. 1
Ecoam em mim as discussões acesas que rodearam em 2002 a apresentação em Londres da exposição Works from the Chapman Family Collection, de Jake e Dinos Chapman. Acompanhadas da frustração recorrente por nada de semelhante, neste caso, acontecer no nosso cantinho virado para o mar. E contudo a ambivalência e permanente desestabilização que a exposição produz em mim aproxima-se da multiplicidade de leituras e avaliações que foram feitas a propósito da "Coleção Chapman" fabricada pelos dois irmãos ingleses. Estou perante uma paródia lúdica da "arte primitiva"? Ou uma ridicularização do sistema de apropriação, consumo e assimilação colonial e neo-colonial? Ou uma melancolia pós-imperial, no sentido de Paul Gilroy, perante o desaparecimento da "autêntica arte primitiva? Um desrespeito pelas "culturas primitivas" neste seu atravessamento transcultural? Ou um desassossego com o destino e a condição dos seus descendentes entre nós?

            Rio? Sorrio? Zango-me? Contemplo? Choro? Interrogo? Não posso deixar de me colocar a pergunta de um capítulo de um livro de Shelly Errington, "What Became Authentic Primitive Art?"2. São objectos desse tipo que PVC toma como ponto de partida e referência para o seu trabalho nesta exposição. Interessa-nos entender como alguns objetos das sociedades colonizadas e conquistadas se tornaram, para nós, Arte Primitiva Autêntica. Para depois seguir as suas aventuras, ver o que lhes aconteceu entre nós, e particularmente o que lhes acontece nestes trabalhos de Pedro Valdez Cardoso. Como usa os objectos primitivos? O que lhe interessa neles? [a forma? Os sentidos? O seu significado e importância, para eles ou para nós?] Com que intenção os utiliza?

           O que ela se tornou, depende. Conforme o que entendermos por Arte Primitiva Autêntica; quer como categoria artística, quer como o leque de objetos assim designados. Não é uma categoria universal e intemporal que existe no mundo abstrato das ideias e essências; antes uma categoria construída num determinado contexto que se transforma, e que corresponde menos a um conjunto de objetos específicos do que a um protótipo ideal.

           Se tomarmos a sua construção curatorial, podemos considerar os objetos primitivos integrados na exposição "Primitivism" in 20th Century Art, apresentada em 1984 no MoMA em Nova Iorque, com curadoria do diretor do museu, William Rubin, como a definição canónica do que é, foi, considerado Arte Primitiva Autêntica. E podemos considerar este ano de 1984, "O inverno da arte primitiva" chamou-lhe James Clifford 3, como o apogeu e o início do seu fim. Cânone que se veio definindo desde os anos 1930, quando se inicia a institucionalização museográfica dos objetos vistos, admirados e apropriados por alguns dos principais agentes da revolução modernista, que desde o fim do século XIX os "descobrem" como autênticos objetos artísticos – artistas primeiro, galeristas, colecionadores, e antropólogos depois.

           Apesar de antiga, a questão de considerar os objectos tradicionais africanos como arte ou não, que coincide muitas vezes com a alternativa de os abordar esteticamente ou etnograficamente, ainda persiste. As discussões, por vezes violentas, em torno do Museu do Quai Branly em Paris - sobre o que do Museu do Homem deve ser aí integrado, sobre a criação de uma "antena" de "artes primeiras" no Louvre, sobre como tratar e apresentar os objectos não-ocidentais no novo museu – são eloquentes 4. Desde a segunda metade do século XIX, começou por se ver neles uma manifestação do que se considerava ser o embrião das formas artísticas. De acordo com o paradigma evolucionista, desenvolvido desde o Iluminismo do século XVIII, à questão então central "qual a origem da arte?" respondeu-se que era a ornamentação - o primeiro impulso artístico a emergir desde que as necessidades básicas para assegurar a sobrevivência estão satisfeitas. Se havia consenso quanto à idéia de que a origem da arte está nesse impulso para ornamentar o corpo humano e objetos utilitários, as opiniões divergiam quanto à sua primeira forma. Mesmo que todos os intervenientes concordassem que o ornamento evoluiria para a representação naturalista, alguns defendiam que na sua base estaria uma vontade geométrica de impor ordem, enquanto para outros os princípios seriam figurativos: a tentativa mais ou menos incipiente de representar formas naturais. Em qualquer dos casos, princípio geométrico ou princípio figurativo, e mesmo que alguns estudiosos vissem as sensibilidades ornamentais das "formas primitivas" como merecedoras de admiração, nunca se considerava aqui a possibilidade de equacionar os artefactos indígenas com obras de arte; que só poderiam existir em estádios mais desenvolvidos de civilização. Nas formas ornamentais dos "primitivos contemporâneos", quando muito ter-se-ia conservado o que foi a semente das nossas belas artes 5.

           Essa aproximação, dos objetos étnicos não-ocidentais aos objetos artísticos ocidentais, só se fará mais tarde. Já no início do século XX, e na vizinhança das grandes transformações na arte euro-americana que marcam a revolução modernista. Alguns objetos tribais passam a ser vistos por nós como objetos artísticos. No campo da arte, são os actores dessa revolução modernista os primeiros a interessar-se por eles, como uma enorme reserva de formas não realistas; que alguns artistas irão adoptar nas suas tentativas de conceber e construir objectos artísticos que escapem aos cânones clássicos, da beleza, da ilusão figurativa, da narratividade da imagem. E no campo antropológico surgem os primeiros trabalhos sobre "arte primitiva". Nos anos que se sucedem à primeira grande guerra forma-se essa nova categoria, "arte primitiva": definem-se as suas fronteiras, e os seus critérios canônicos são estabelecidos. Num diálogo muito estreito, e com um olhar muito informado pelas estratégias estéticas definidas nos sucessivos –ismos da arte moderna – cubismo, expressionismo, surrealismo... O desenho bidimensional que antes dominara, não é mais um limite; a área do artístico nas "sociedades primitivas" alarga-se, e um interesse cada vez maior é atribuído à escultura. O centro das atenções desloca-se para exemplos africanos, primeiro, e da Oceania depois, onde a escultura domina, numa profusão de formas significativas que não são representações ilusionistas. Os objectos não-ocidentais são vistos como objetos artísticos, no sentido ocidental do termo, tal como definido pelos modernismos euro-americanos. E mesmo quando são estudados por antropólogos, por referência às sociedades e culturas de que provêem, as questões que se lhes põem partem ainda das noções ocidentais de arte e de objecto artístico: quais os seus princípios formais e de composição?; quais os significados das suas formas iconográficas? Embora neste caso do seu estudo antropológico a ênfase tenha acabado por ser posta nas funções dos objectos; a sua forma e os seus significados são maioritariamente vistos como reflexões dos contextos em que são utilizadas. O que veio a cristalizar-se na ideia de uma dicotomia na abordagem dessas "artes primitivas": por um lado uma leitura estética, da parte de artistas e historiadores da arte, e uma leitura funcional do lado dos antropólogos.

           Desde o princípio o interesse de muitos artistas vai para além das formas visíveis dos objectos, e das soluções plásticas que neles apreciavam; é assim com Picasso e com os expressionistas alemães (E. Nolde, E.L. Kirchner, E. Heckel, M. Pechstein), que se interessavam pelas filosofias e concepções do mundo que mais ou menos intuitivamente consideravam estar por detrás dessas produções; ou com V. Kandinsky, com a particularidade de ter também formação académica de antropologia e de ter feito trabalho de campo na Lapónia, com os chamanes siberianos, e noutras regiões da Rússia 6; e os surrealistas, de A. Breton ao grupo dissidente da revista "Documents", foram leitores atentos da literatura antropológica nas suas tentativas de reabilitarem um "pensamento mítico", uma "alma primitiva", ou o que depois Lévi-Strauss chamou o "pensamento selvagem". Mais recentemente, Daniel Spoerri escreveu que "A arte relaciona-se com o seu tempo e o seu lugar; só pode ser compreendida por referência ao caldo cultural em que nasceu. A arte diz alguma coisa acerca do modo como as pessoas vêm o mundo num tempo e num sítio determinado. Quanto mais se sabe sobre as condições da sua génese melhor." 7 Por sua vez, do lado da antropologia valerá a pena citar a rememoração que Raymond Firth faz do seu primeiro interesse pelas "artes primitivas" de que foi pioneiro desde 1925:

           "Para alguns antropólogos, entre os quais me incluo, a admissão nas artes plásticas e gráficas da distorção, da transformação da forma a partir das proporções da visão quotidiana, foi uma influência libertadora. Foi importante, não só para a apreciação da arte ocidental contemporânea, mas também para uma compreensão mais clara da arte exótica [...] A pintura e a escultura que os antropólogos encontram em sociedades exóticas passavam a poder ser olhadas, não como produtos de uma visão imperfeita, de crueza técnica, de adesão cega à tradição, mas como obras de arte no seu próprio direito; a serem julgadas como expressões de concepções originais de artistas, à luz da sua tradição cultural. [...]
"Faço este esboço da primeira história [até à segunda guerra], para mostrar a mistura de interesses antropológicos pela arte com outros. Claramente, e apesar de uma certa falta de discriminação e de uma aproximação lírica à arte primitiva, as reacções estéticas genuínas de um público leigo eram estimuladas por estes produtos exóticos, e ajudaram ao desenvolvimento da experiência antropológica da arte. Desde então, o papel dos antropólogos, como sistematizadores e intérpretes contextuais continuou discretamente." 8

           Voltemos à exposição no MoMa em 1984. Para perguntar quais os critérios que presidem aí à inclusão dos objetos tidos como Arte Primitiva Autêntica – do tipo dos que os primeiros modernistas encontraram e que os inspiraram, dos que integraram as mais prestigiosas coleções, e dos que são assim apresentados nas exposições dos principais museus. A Autenticidade: são Autênticos os objetos produzidos em contextos tradicionais incontaminados pela Civilização Europeia; sendo aí produzidos para uso local, e tendo sido efetivamente assim usados. Esta ideia do Autêntico tem por fundamento a representação que a Europa construiu do Outro como seu oposto: no caso, como sociedades que vivem fora do tempo histórico, num estádio primordial que se mantém fixado e imutável; até que a chegada dos europeus as introduz na história e na mudança, bem como no mercado. Assim, desde a história universal hegeliana da revelação do Espírito Humano, e os seus desenvolvimentos nas teorias oitocentistas informadas por um paradigma evolucionista omnipotente e omnipresente, o Outro, os povos que iam sendo conquistados e colonizados, são representados como os Primitivos - os que mantêm vivos e puros modos de vida e concepções do mundo que caracterizam as primeiras formas de vida humana, o primeiro estádio da humanidade quando passa da Natureza para a Cultura. E são os seus artistas que produzem "tradicionalmente", "sensivel e espontaneamente", para funções religiosas e rituais "tradicionais", intocados pelo mercado, o lucro, e o movimento de mudança imparável que a história produz – que são nosso monopólio - objetos autenticamente "primitivos"; que eventualmente degeneram e acabam por ser abandonados com a nossa chegada. Independentemente das imagens que se constroem desses "primitivos", selvagens a ser civilizados, ou reminiscências de formas de vida mais naturais e "autênticas", elas são de facto as duas faces da mesma moeda, o etnocentrismo eurocêntrico. Essas duas imagens opostas, o outro "selvagem supersticioso", o outro "homem no estado de natureza", servirão para definir o que é Arte, dos artefactos primitivos. Os tipos mais elevados de "arte primitiva", os que definem o núcleo do protótipo ideal que é a Arte Primitiva Auntêntica, são então caracterizados por se assemelharem aos que influenciaram os primeiros modernistas (Picasso, os cubistas, os expressionistas alemães, os surrealistas); foram recolhidos em contextos virgens do contacto com o ocidente (até aos anos 1920 ou 1940, conforme diferentes situações); têm a forma de máscaras ou de estatuetas; são maioritariamente feitas de madeira; são objetos rituais mais do que utilitários, tendo por isso a capacidade de nos pôr em contacto com realidades superiores; e de um ponto de vista formal apresentam características plásticas próximas das dos diferentes modernismos.

           Podemos dizer que do início do século XX até aos anos de 1960, é este protótipo que habita os primitivismos modernistas euro-americanos. Embora continue a estar presente para o nosso senso comum, e para muitos artistas ocidentais que trabalham nos nossos dias, a partir daí, com o "pós-modernismo" ou melhor a "arte contemporânea", vem-se-lhe acrescentar uma outra configuração. Digamos que na exposição do MoMa em 1984, na sua terceira secção, dos "primitivistas contemporâneos" se apresenta o seu lado mais sensaborão: obras de artistas euro-americanos com materiais que significam o primitivo (penas, tecidos, terra…). Mas já em 1968 o crítico de arte brasileiro Mário Pedrosa tinha sugerido um outro caminho:

'A arte dessas culturas não é uma arte de contemplação, mas ativa, participante, coletiva, e não substitui nada, em nenhuma das suas manifestações. Não é representação de uma imagem, mesmo da realidade, porque é a própria realidade, ou uma das fontes de recreação dessa realidade.[...]

"Tal função é, hoje, talvez, o elemento que mais fascina a sensibilidade dos meios artísticos contemporâneos. Ao início do século, [ aos cubistas e expressionistas] o que os abalou foi a vitalidade plástica, a beleza formal daquelas imagens [...]

" Hoje, as artes das culturas primitivas [...] exercem fascínio sobre a sensibilidade moderna pelo que significavam, pela ação que exerciam [...]

"A arte negra continua a valer para nós com todas as suas eminentes qualidades estéticas e formais. Mas o que o artista de hoje procura é uma equivalência entre a sua atitude, seu trabalho, e a atitude e o trabalho do artista negro e do artista caduceu [Kadiweu], nos seus respectivos contextos sociais."9

           Se ao longo do século XIX a arte européia foi perdendo as suas funções públicas tradicionais (comemorativa, decorativa, cognitiva e educativa, litúrgica), compensou esta perda com um recuo auto-reflexivo sobre os seus meios e os seus objectos, justificando a sua sobrevivência com a insistência na sua autonomia pura. Mas a problematização dessa autonomia, e a violação das suas fronteiras também estiveram sempre presentes. Seja atribuindo às obras de arte, livres de qualquer propósito de representação externa, poderes equivalentes aos que as culturas tradicionais investiram nas suas criações expressivas 10; da pintura-exorcismo de Picasso, a propósito do seu Les Demoiselles d'Avignon após a visita às galerias empoeiradas do Museu do Trocadero em 1907, às ações em que Beuys se propõe uma cura espiritual, são inúmeros os exemplos em que se reivindica para a obra artística a capacidade de agir e produzir efeitos na vida quotidiana. Seja substituindo a auto-referência pela referência a outras formas culturais extra-artísticas, marcando uma viragem na nossa noção do que é cultura, e colocando a arte nesse contínuo cultural: como acontece desde a arte Pop e o Minimalismo. Ou ainda interrogando o estatuto sociopolítico da atividade artística como um processo de produção de espaço social: pela análise da própria instituição artística, das suas condições físicas e arquitectónicas para, posteriormente, os sentidos sociais, culturais, políticos e históricos que lhes estão associados, na arte 'site-specific' e na instalação; ou pela consideração do espectador, que não pode ser definido só fenomenologicamente, já que é sempre também um sujeito social demarcado por múltiplas diferenças (sexuais, de gênero, raciais, étnicas, de classe, etc.), na Body Art e na Performance. Mais radicalmente, e mais recentemente, muitos artistas assumiram o seu trabalho como uma exploração da dimensão artística de múltiplas vozes da diferença no interior das nossas sociedades, que são alternativas à sua vida hegemônica - das mulheres, de minorias sexuais, étnicas ou imigradas, de doentes, etc. Ou definem o seu trabalho em torno de experiências pessoais do quotidiano e da subjetividade, para fazer um comentário, ou para reconfigurar os seus significados, introduzindo novos pontos de vista. De que resulta o que tem vindo a ser chamado arte participativa, nova arte pública, arte quase-antropológica. De notar que estas possibilidades deixaram também de ser um exclusivo euro-americano, para abrangerem a arte contemporânea em geral, independentemente das origens geográficas ou étnicas dos seus autores. Em todos estes casos a dimensão performativa da arte é afirmada.

           As palavras de Susan Hiller, uma artista com um passado acadêmico que vem da antropologia, são esclarecedoras:
"Os artistas, no sentido que dou à palavra, modificam a sua própria cultura ao mesmo tempo que aprendem com ela. O artista, como toda a gente, faz parte da sua cultura. O seu trabalho regista condicionamentos sociais biograficamente determinados. E não admite descontinuidades entre a experiência e a realidade, eliminando qualquer fosso entre o investigador e o objeto ou a situação investigados.

           "Os artistas perpetuam a sua cultura quando usam alguns aspectos dela. A atividade artística é, em grande medida, uma manifestação, um retrato ou uma simbolização de coisas interiorizadas que resultam de condicionamentos socioculturais; a minha produção pessoal pode parecer enigmática ou paractática, mas para ser de alguma maneira reconhecida ela terá de ser, em larga medida, simplesmente condicionada por fatores que condicionam todas as outras pessoas – linguagem, estruturas sociais, condições econômicas, etc.

           "Os artistas mudam a sua cultura, ao enfatizarem alguns dos seus aspectos, que eram talvez previamente ignorados. A versão dos artistas pode mostrar potencialidades culturais escondidas ou suprimidas. Eles podem oferecer noções de cultura 'para-conceituais', ao revelarem em que medida os modelos culturais partilhados são inadequados, por excluírem ou negarem parte da realidade. Em todo lado, os artistas trabalham habilmente no interior dos próprios contextos socioculturais que os formaram. O seu trabalho é recebido e reconhecido, em diferentes graus, no interior destes contextos. São especialistas da sua própria cultura."11

           Ainda antes de nos voltarmos para a exposição Cross-Cultural (works on flatness, dominion and erasing) deve enfatizar-se que do que tratamos até aqui foi menos dos objetos dos povos colonizados, do que dos modos como eles foram sendo tratados no mundo euro-americano da arte. Neste sentido, podemos dizer que estão mais ou menos bem conservados em museus e coleções, fora das suas sociedades de origem, maioritariamente na Europa e na América do Norte. Os objetos que continuam a ser produzidos pelo proletariado dos novos países independentes, embora se mantenham interessantes para o ocidente, ficam claramente fora da categoria Arte; as designações que recebem são significativas: "artes étnicas"ou "artes turísticas".

           O trabalho de Pedro Valdez Cardoso desenvolve-se definitivamente fora do paradigma primitivista, em qualquer uma das versões referidas. Na sua já longa e persistente atividade artística, piscou anteriormente o olho a objetos africanos tradicionais: Jogos de Caça e Mme Pompadour Voyage en Afrique, respetivamente no Porto em 2007 e em Vigo em 2009; e a posterior Les Dresseurs, já em 1011, também no Porto, são exemplos evidentes. Mas, também com grande coerência, há uma questão recorrente, que, embora não esgotando as suas preocupações está presente, mesmo que lateralmente, em grande número dos seus trabalhos e exposições – o colonial, a nossa história nacional-colonial, a situação da nossa pós-colonialidade. Este projeto, que já se intitula "cross-cultural", constitui um ponto de encontro e de articulação particularmente feliz destas duas vertentes da sua obra.

            Uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian permitiu-lhe ir mais longe na relação com os objetos. Para além do material fotográfico publicado, pode observá-los e analisá-los em vários museus que visitou (o Quais Branly em Paris, O Museu Nacional de Copenhaga, o Museu Etnográfico de Madrid, além do Museu Nacional de Etnologia em Lisboa). Alguns objetos foram selecionados para serem recriados pelo artista.

            Mas o que o motivava era menos a aparência dos objetos e as suas qualidades formais,ou a sua dimensão espiritual, do que os processos históricos que condicionaram e condicionam a sua percepção. É a sua história, e a dos povos que os produziram, é a nossa utilização deles, a colonização e globalização que lhes está associada, o que lhe interessa. A construção da obra segue-se sempre a um longo processo de investigação de campos variados, que neste caso envolveram o estudo de alguns dos mais importantes textos saídos dos estudos pós-coloniais, de Fanon a Saïd, e que consideram as suas intercepções com os processos de construção da nação, e com o processo de globalização. O próprio artista refere que no seu trabalho criativo se tecem sempre dois processos, a que chama "uma colagem de ideias", que engendra uma relação entre as coisas e os seus efeitos de sentido, e "uma colagem de materiais", um enxertar cuidadoso, minucioso e preciso. E cada obra deve ser vista como a materialização de um conceito, um complexo de ideias, que também se vai desenvolvendo em articulação com uma investigação e experimentação formais.

           O que aconteceu então à Arte Primitiva Autêntica nestas peças de Pedro Valdez Cardoso? Recriou alguns objetos primitivos a partir de utensílios e materiais de uso doméstico, particularmentes produtos para limpeza, adquiridos em hipermercados e "lojas de chineses". A folha de sala que acompanhou a exposição listava: alguidares, baldes, esfregonas, esponjas e panos de limpeza, frascos de detergentes, panelas, frigideiras, etc; que foram depois combinados e enxertados com o auxílio de costura e de fitas adesivas, de modo a simularem os objetos primitivos de que partiu.

           O que resulta são objetos contraditórios, escorregadios; fascinam e intimidam, deslumbram e ridicularizam. Pensa-se na noção de "camp", o "espírito do extravagante" como lhe chamou Susan Sontag12, invertendo porém o seu sentido nesta autora. Aqui, no lugar de objetos que se apresentam como sérios mas que não podem ser assim tomados porque são excessivos, teremos antes objetos que parecem divertidos sem que isso dissolva preocupações sociais e políticas.

           Estaremos perante uma metodologia específica que introduz areia na engrenagem de qualquer leitura essencialista, desenvolvida em torno de questões de género e de sexualidade, mas que aqui é aplicada às questões de identidade produzidas pela colonização, a pós-colonialidade e a globalização. Uma espécie de "'cross dressing' cultural", na expressão muito feliz de PVC. Que reflete a instabilidade e catalisa a desestabilização de qualquer identidade que se queira atribuir. Uma força dinâmica de desidentificação que lhe permite, no que ao colonial diz respeito, não entrar no "mundo que o português criou" nem na sua rejeição estrita; antes desvelando a sua condição de ambivalência, de instabilidade, de deslocamento permanente. A instalação acrescenta a essa ideia de mobilidade e de ambiguidade - a galeria, lugar por excelência da mercantilização, transformada numa espécie de cais de cargas e descargas, com paletes e embalagens em madeira de transporte de mercadorias.

           Os trabalhos apresentados na Cross-Cultural (works on flatness, dominion and erasing), são "queer" de várias maneiras: na sua produção - objetos primitivos travestidos com materiais domésticos de limpeza, por sua vez transformados em simulacros de objetos primitivos; na sua existência atual de objetos artísticos - na intercepção dos modelos e a sua história com os materiais que evocam tanto a limpeza do seu contexto originário quando transformados em Arte, quanto a atividade profissional mais frequente, e a condição social das descendentes dos povos que os produziram, nas antigas metrópoles; mas também na sua recepção – na instabilidade semântica profunda que os torna estranhos, excêntricos, bizarros. Queer Objects!

José António B. Fernandes Dias
Lisboa, 14 Novembro 2011


1 Sobre estes temas venho trabalhando desde há trinta anos. Pode ver-se, Arte Primitiva – Arte contemporânea. Encontros e Desencontros, in "Antropologia Portuguesa", 7, Coimbra, Instituto de Antropologia, 1989; Uma definição de arte para uma antropologia da arte, in "Ler História", 20, Lisboa, Teorema, 1990; Rito e mistério. Os objectos e a sua eficácia, in "Rito y Misterio", Symposio Internacional de Antropologia, A Coruña, Universidade da Coruña, 1991; Memória da Amazónia. Etnicidade e territorialidade – Revista da Exposição, Porto, Universidade do Porto, 1994; Arte, Arte Índia, Artes Indígenas, in "Artes Indígenas", São Paulo, Associação Brasil 500 Anos Artes Visuais, 2000; Reviewing Indigenous Arts, in "Brazil: Body and Soul", Nova Iorque, Guggenheim Museum, 2001; Das Esquinas do Olhar, in "Looking Both Ways. Das Esquinas do Olhar. Arte da Diáspora Africana Contemporânea", Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2005; Pós-colonialismo nas artes visuais, ou talvez não, in Manuela Ribeiro SANCHES (ed), "'Portugal não é um país pequeno'. Contar o Império na pós-colonialidade", Lisboa, Ed. Cotovia,2006; Os Poderes das Formas, in "Formas e Energias. Colecção de Arte Africana de Eduardo Nery", Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 2009.
2 Shelly ERRINGTON, The Death of Authentic Primitive Art and Other Tales of Progress, Berkeley, University of California Press, 1998.
3 James CLIFFORD, "Histories of the Tribal and the Modern", in The Predicament of Culture:Twentieth Century Ethnography, Literature and Art, Cambridge (Mass), Harvard University Press, 1988.
4 Pode consultar-se a propósito o número especial de Les Cahiers de l'École nationale du patrimoine (1999) ou o dossier nº 108 da revista le débat (2000).
5 Frances CONNELLY, The Sleep of Reason. Primitivism in Modern European Art and Aesthetics, 1725-1907, The Pennsylvania State University Press, 1995.
6 Peg WEISS, Kandinsky and Old Russia. The Artist as Etnhographer and Shaman, New Haven, Yale University Press, 1995.
7 Daniel SPOERRI, "Art That is Completely Explicable is Not Art", in M. SZALAY (ed), African Art from the Han Coray Collection 1916-1928, Munique, Prestel, 1998.
8 Raymond FIRTH, "Art and Anthropology" in J. COOTE e A. SHELTON (eds), Anthropology, Art and Aesthetics, Oxford, Clarendon Press, 1992, p. 19-21.
9 Mário PEDROSA, "Arte dos Caduceus, arte negra, artistas de hoje", (1968), in Forma e Percepção Estética, São Paulo, EDUSP, 1996, p. 97-100.
10 Francesco PELLIZZI, Adventures of the Symbol: Magic For the Sake of Art, Nova Iorque, Cooper Union, 1986.
11 Barbara EINZIG, Thinking About Art. Conversations with Susan Hiller, Manchester, Manchester University Press, 1996, p. 23-24.
12 Susan SONTAG, "Notes on Camp", 1964, in Against Interpretation and Other Essays, Nova Iorque, Laurel Edition, 1969.


_________________________________________________________________________________________________________________________________