VIAGEM AO CORAÇÃO DAS TREVAS de Nuno Faria

OS RECURSOS DO MÉTODO DE PEDRO VALDEZ CARDOSO de João Pinharanda

AD GLORIAM EPHEMERAM de João Pinharanda

SIGHTSEEING de Bruno Leitão

À LA CARTE de Bruno Leitão

OBJECTOS QUEER de José António Fernandes Dias

ENTREVISTA (CROSS-CULTURAL) de Lúcia Marques

QUARTO SEM VISTA de João Miguel Fernandes Jorge


O PESO DA HISTÓRIA@MNSR de Fátima Lambert


UMA CONVERSA CRUA de Hugo Dinis


MUNDOS INQUIETANTES de Xosé M. Buxán Bran

THE ORDER OF TODAY IS
THE DISORDER OF TOMORROW de Luísa Soares de Oliveira


CRUDE de Filipa Oliveira


MEMÓRIAS DOS ACTOS de Sandra Vieira Jürgens


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ENTREVISTA (CROSS-CULTURAL)

LM: Cross-Cultural é um projecto que na sua essência é iniciado em 2007 com a série Jogos de Caça (exposta nesse mesmo ano na Galeria Módulo do Porto). Como é que surgiu essa ideia inicial?

PVC: A série Jogos de Caça surgiu inicialmente pela minha vontade de trabalhar com um material específico: tecidos toile de jouy. Não sabia muito bem o que fazer com o material, apenas tinha esta vontade e fascínio puramente estético. Decidi então pesquisar um pouco sobre a história do próprio tecido e percebi que havia uma história de domínio e de cruzamento cultural associada à produção do tecido. O toile de jouy é visto como um exemplar do gosto burguês, bastante popularizado numa certa cultura francesa (que durante bastante tempo foi ditadora do denominado "bom gosto"). Porém a técnica de impressão usada foi trazida da Índia. Depois interessou-me particularmente o facto de ter sido usado ao longo de várias décadas como "espaço memorativo". Em determinados momentos históricos mandou-se imprimir um padrão comemorativo desse mesmo acontecimento como forma de celebração. Como o tecido tem esta ligação histórica memorativa e está associado a formas mais ou menos explícitas de exercícios de poder, decidi realizar esculturas baseadas numa iconografia também ela associada ao poder. É aqui que surgem as cabeças de animais/troféus exóticos e a heráldica, que depois eu desconstruo pela forma como essa iconografia é reconstruída, através do uso de objectos quotidianos e precários, tais como latas de cerveja, cascas de banana ou meias.

LM: Esse interesse pela migração de motivos e culturas a eles associados também acontece relativamente aos materiais que reutilizas na etapa seguinte do projecto: materiais que qualquer pessoa reconhece do seu dia- a-dia pessoal e que de algum modo sintetizam um determinado percurso histórico, tal como os motivos que surgem como que 'assimilados' numa zona de fronteira entre culturas...
Mme. Pompadour Voyage en Afrique, o título da etapa subsequente a Jogos de Caça, reforça ainda mais essa síntese. Nessa altura já tinhas
decidido que o projecto seria uma trilogia?

PVC: Ainda não. A noção de trilogia só surge mais tarde, após a conclusão do projecto Mme. Pompadour Voyage en Afrique, pois percebi que me interessava voltar a trabalhar sobre as 'artes primeiras' e o folk, embora numa outra perspectiva. A grande diferença, para além dos materiais usados, residiu no facto de todas as peças remeterem para um imaginário de artes decorativas: potes, jarros, tapeçarias, almofadas, pratos de parede, arranjos florais, etc. Cruzei esse imaginário com as 'artes primeiras' africanas, embora aqui [em "Mme. Pompadour…"] as referências fossem do domínio do cliché, ou seja, aquilo que é suposto no imaginário colectivo serem as manifestações artísticas africanas na sua origem: ossos, caveiras, etc. Um imaginário que ainda hoje é perpetuado por Hollywood em filmes de aventuras.

LM: Isso lembra-me a exposição da "Colecção Africana" do Pancho Guedes, que incluiu algumas máscaras das mais conhecidas na Europa - e que circulam através dos Antiquários -, mas precisamente para servirem de contraponto às máscaras menos reconhecidas como 'genuínos' artefactos africanos (dado que não se encontram nesse circuito 'legitimador')… Nessa primeira etapa do projecto - Jogos de Caça - pareces ter-te interessado mais pela recontextualização dessas imagens impressas, enquanto que na segunda parte - "Mme. Pompadour…" – há talvez uma atenção maior aos processos de aculturação decorrentes dessa circulação de motivos (tal como os padrões das capulanas, hoje consideradas símbolo nacional da cultura moçambicana, resultam do impacto industrial e comercial da dominação colonial holandesa)…

PVC: Sim, por um lado interessava-me trabalhar sobre os processos de aculturação de que falas, e que se tornam mais evidentes no projecto final: CROSS-CULTURAL – Works on flatness, dominion and erasing. O ponto de partida da primeira etapa (Jogos de Caça) é semelhante ao exemplo que dás (e que julgo ser a estrutura basilar do trabalho do Ynka Shonibare, embora no caso do Ynka se trate de uma maior perversidade visto que demonstra a forma como a identidade de determinado povo pode ser construída por outro…). Claro que a identidade e a cultura são sistemas vivos e em permanente mutação, e sempre existiram e continuarão a existir cruzamentos, apropriações ecomportamentos simbióticos e osmóticos... No caso da exposição Jogos de Caça tratava-se mais de uma questão de domínio cultural, a partir do momento em que uma cultura se propria de um determinado aspecto cultural de outra e passa a tomá-lo como seu. Há inúmeros exemplos de situações similares ao longo da História. Por outro lado, interessava-me também (e nisso há igualmente uma ligação à exposição do Pancho Guedes que referes), perceber a forma como os artefactos e objectos das 'artes primeiras' africanas chegam ao ocidente e entram em circulação e contacto com o grande público pela via do decorativo. Ou seja, a apropriação e visibilidade que é dada a esses objectos, fora dos museus, é sempre num estatuto decorativista. E mesmo se pensarmos no modernismo, e nalguns artistas modernistas como Picasso que acabaram por dar visibilidade à arte africana, isso aconteceu sempre de forma descontextualizada em relação à origem do seu referente (da arte africana) e quase sempre pela via do exótico.

LM: Então qual foi o "plus" da segunda etapa?

PVC: A segunda etapa continua a explorar as questões do domínio cultural, mas introduz um referente geográfico específico – África. Introduz igualmente uma iconografia decorativa assumida, a qual é usada como metáfora para a condição generalizada da recepção ocidental da produção artística oriunda desse continente. Por outro lado, e em oposição à primeira etapa, não existe o uso de uma iconografia e simbologia associada historicamente ao poder, nem o recurso a objectos de uso quotidiano, precários e de certa forma metafóricos de um mundo capitalizado. Para além desses aspectos, existe um outro que se prende com o conceito de "facto histórico", e que está presente no título do projecto - Mme. Pompadour Voyage en Afrique, e que neste caso é, à partida e tanto quanto sei, uma mentira, uma vez que Mme. Pompadour nunca esteve em África. O que me possibilitou a concepção de um estilo artístico inexistente, ou seja, a criação de uma série de objectos historicamente fabricados e suportados numa mentira.

LM: Que imagem tens do "continente África" e de que modo é que ela tem influenciado o teu trabalho? Ou achas que tens abordado um cliché" de um colectivo no qual não te inseres…?

A imagem que tenho do continente africano é múltipla, não acho possível ter uma só imagem de um continente. O meu conhecimento do continente africano é um conhecimento à distância, construído por leituras, documentários, produção artística e cultural, dados estatísticos, pelos media, histórias e vivências de amigos e familiares, ou seja, é um conhecimento perspectivado e adquirido por outros. A minha experiência pessoal em território africano limita-se a uma viagem que fiz ao Egipto. Mas existe uma imagem comum a alguns países africanos (e que no Egipto era igualmente notório) que é a do lixo existente no espaço público. Essa imagem tem grande influência no meu trabalho. Eu espero ter a capacidade de perceber que estou perante um cliché e uma imagem estereotipada. De outro modo seria impossível operar sob a desconstrução desse mesmo estereótipo. Mas acredito que perante a diferença existem duas formas de agir: ou por recusa, que advém do medo e da desconfiança perante o desconhecido; ou por fascínio, o que também poderá ter o seu lado negativo e levar a um entendimento meramente ancorado no exótico e no decorativo. Acredito ainda que ninguém está completamente fora do 'cliché colectivo' de que falas. Seria uma grande falácia e ingenuidade pensar que é possível ter uma visão do outro sem rastos de heranças socioculturais que transportamos independentemente de termos consciência delas, de as questionarmos ou até mesmo de as recusarmos. O conhecimento e a sua transmissão estruturam-se sempre numa base generalista.

LM: E por falar em "desconstrução", na terceira (e última) etapa que fecha esta trilogia – sob o nome genérico de "Cross-Cultural" - encontramos uma exposição de objectos instalados na maior parte dos casos em cima das paletes e caixas que os terão transportado, como se percorressemos um armazém de uma colecção muito sui generis. São composições feitas com materiais e objectos utilitários (baldes, panos da loiça, fitas que assinalam perigo, etc) e que por isso também parecem descontruir as noções de colecção e exposição, para além do próprio conceito de "cross- cultural". Que papel é que esta terceira etapa vem cumprir nesta trilogia que, inclusive, acaba por adoptar a designação geral de "Cross-Cultural"?

A terceira etapa partiu inicialmente de uma vontade minha de trabalhar a partir de objectos e artefactos maioritariamente africanos, asiáticos e de culturas indígenas de uma forma mais próxima do próprio objecto. Tive primeiro de entender e estabelecer qual iria ser o meu perímetro de acção, ou seja, de que forma iria abordar de novo estas questões de modo a não ser uma repetição em relação aos dois projectos anteriores. Sabia à partida que queria estender o meu campo de pesquisa a culturas ainda não "visitadas" por mim anteriormente e que iria reproduzir os objectos numa proximidade formal com os seus originais. Sabia igualmente que iria abordar questões conceptuais próximas às já trabalhadas – tais como: acções de poder e domínio cultural neo e pós-coloniais –, ao que viriam acrescer noções de consumo, mercantilismo, capitalismo e globalização. Também me interessava que os materiais por mim usados fossem associados ao quotidiano e a uma vivência contemporânea. Não existem neste último projecto evocações às artes decorativas ou o recurso a elementos ditos de 'alta cultura'. Comecei por fazer uma pesquisa, que decorreu durante um ano, dos objectos que queria trabalhar. Seguiu-se a escolha dos materiais a utilizar (que por si mesmos quis que traduzissem de forma mais directa as noções conceptuais implícitas). O final resulta de um apagamento geral, ou seja, tens objectos referentes a culturas díspares, e geograficamente distantes, realizados de forma semelhante. Essa uniformização foi essencial para criar algum estranhamento em relação quer aos próprios objectos quer ao título do projecto, pois entrava (e aqui surgem os materiais – panos e esponjas de limpeza usados) em conflito com este. É preciso olhar para os objectos e ver/perceber de que são feitos: uma máscara de ópera chinesa feita a partir de uma frigideira, um Buda tailandês com um boné com a sigla L.A., uma tábua de baixo-relevo do Bornéu feita a partir de uma prancha de body-board ou um chapéu Yoruba feito a partir de um balde usado na construção civil. Os objectos originais dos quais parto e a sua funcionalidade são de extrema importância neste projecto. Não existe aqui um apagamento do objecto original como acontece em muitos trabalhos meus. Em relação à apresentação do projecto propriamente dita, existe claramente uma desconstrução da noção expositiva de que falas. Todos os museus que visitei reflectem o mesmo estereótipo expositivo, e uma forma de catalogar, inventariar… se quiseres de "criar conhecimento", e até aura e misticismo nestes objectos. Quis demarcar-me disso, quis apresentar as peças numa amálgama conjunta e numa ausência de mitologias. A frase "nowadays everything looks pretty much the same" poderia ter sido o título deste último projecto.

LM: E assim se fechou a trilogia… Mas terá sido o fim de um ciclo no teu percurso?

Não tenciono trabalhar de uma forma tão directa sobre estes referentes proximamente, mas é impossível efectuar um corte abrupto depois de passar tanto tempo de volta destas questões e desta imagética. Acredito que existirão situações pontuais em futuros projectos que se irão inscrever numa linguagem próxima da destes trabalhos. Aliás o meu último projecto Les Dresseurs (Os Domadores) não é mais que uma continuidade e aprofundamento da série Mme Pompadour Voyage en Afrique. Do mesmo modo que existem peças que foram pensadas e ficaram por executar ou uma série de colagens que realizei recentemente cuja temática recai sobre estas questões e que tenciono mostrar brevemente. Penso que o trabalho artístico tem um desenvolvimento próprio, uma energia se quiseres, que é independente até da vontade do seu autor, e isto, sem qualquer fundamento místico, quer apenas dizer, que no decurso da realização de um projecto nascem sempre outros.

Lúcia Marques


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