VIAGEM AO CORAÇÃO DAS TREVAS de Nuno Faria

OS RECURSOS DO MÉTODO DE PEDRO VALDEZ CARDOSO de João Pinharanda

AD GLORIAM EPHEMERAM de João Pinharanda

SIGHTSEEING de Bruno Leitão

À LA CARTE de Bruno Leitão

OBJECTOS QUEER de José António Fernandes Dias

ENTREVISTA (CROSS-CULTURAL) de Lúcia Marques

QUARTO SEM VISTA de João Miguel Fernandes Jorge


O PESO DA HISTÓRIA@MNSR de Fátima Lambert


UMA CONVERSA CRUA de Hugo Dinis


MUNDOS INQUIETANTES de Xosé M. Buxán Bran


THE ORDER OF TODAY IS
THE DISORDER OF TOMORROW de Luísa Soares de Oliveira


CRUDE de Filipa Oliveira


MEMÓRIAS DOS ACTOS de Sandra Vieira Jürgens

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CRUDE


            O corpo de trabalho que Pedro Valdez Cardoso (Lisboa, 1974) tem vindo a edificar centra-se em torno de problemáticas relacionadas com a construção da identidade. Esta identidade pode ter inúmeras consubstanciações: sexuais, nacionais, históricas. O seu trabalho carrega assim uma forte carga política, ou pelo menos o desejo que as suas obras tenham como efeito a transfiguração do campo de acção artística em lugar de debate e reflexão sobre problemáticas que extravasam a estética pura. Desta forma, podemos afirmar que a estratégia artística de Pedro Valdez Cardoso se efectua a dois níveis: o do discurso visual e o do discurso conceptual. Visualmente, as obras deste artista têm vindo a prosperar em aparato e consistência. Regem-se pelo princípio da apropriação de materiais provenientes do mundo ‘profano’. A mestria manual, característica dos artesões quase desaparecidos, domina o processo de trabalho, no qual o acto de camuflar é basilar. Este movimento de encobrir é não só assumido como evidenciado, apesar de a memória do objecto apropriado perpassar para o novo. A forma mantém-se, apenas a ‘cobertura’, a sua pele, é substituída, permitindo sempre o reconhecimento dos objectos originais. Estes deixam de traduzir determinado conteúdo entendido pela sociedade de forma generalizada, para ganharem novas leituras e novas significações. A estratégia de duplicidade iniciada na mudança de pele é transporta para outros conceitos concernentes às estratégias conceptuais da sua intervenção artística: visibilidade /invisibilidade; efémero/permanente; vida/morte.

            Na exposição “Crude”, Pedro Valdez Cardoso apresenta um conjunto de trabalhos inéditos, aparentemente díspares, mas que estão unidos sob o conceito do apagamento, do anular da cor, e da consequente ambiguidade de significação. Há dois movimentos pivotais na criação deste conjunto de trabalhos. Por um lado, a apropriação/reconstituição adulterada de quadros centrais da História da Arte, e por outro, a instigação conceptual sugerida pelos livros “O Coração das Trevas” de Joseph Conrad e “A sombra do caçador” de Davis Grubb.

            Valdez Cardoso comenta o facto de obras-primas da pintura como a Jangada da Medusa de Géricault ou a Liberdade conduzindo o povo de Delacroix ou mesmo a Ofélia de Millais transportam uma intensa carga simbólica, frequentemente relacionada com uma crítica social. De certa maneira, o artista anseia devolver-lhes essa dimensão frequentemente menosprezada acrescentando as suas próprias reflexões. A selecção das obras sobre as quais interveio teve em consideração a possibilidade de meditar sobre as teorias da concepção do mal, das dinâmicas totalitárias e da condição humana como apresentadas no pensamento filosófico de Hannah Arendt. Considere-se, por exemplo, a apropriação que faz da Jangada. Se a pintura original, para além de relatar, quase de forma jornalística, um acontecimento terrível verídico, foi também lugar de denúncia social para práticas canibais. A nova Jangada joga com os conceitos do quadro original e adiciona uma reflexão sobre a fuga dos imigrantes ilegais dos seus países de origem em busca de um mundo novo que acabará por os canibalizar.

            Apesar da unidade conceptual, aparentemente, a exposição divide-se em dois momentos distintos simultaneamente separados entre si e uniformizados em si cromaticamente: o andar térreo e o primeiro piso. Utilizando a especificidades do espaço particular do Pavilhão Branco do Museu da Cidade, Valdez Cardoso propõe no rés-do-chão uma instalação que joga com a ideia de espelho e de duplicidade. A disposição das obras neste andar é feita de forma simétrica. Dois monumentos, ou como nas palavras do artista, anti-monumentos, encontram-se centrados nas duas salas. Sobre um pomposo plinto, está colocado um conjunto de objectos, os quais parecem provenientes de outras esculturas. Um monumento feito das sobras, dos adornos não utilizados. Um monumento à insignificância. No entanto, cada elemento que constitui a escultura carrega uma carga simbólica atribuída pelos séculos de inclusão em esculturas públicas: o troféu, a espada, a caveira, a bandeira, é aqui esvaziado de significado. Nesta nova edificação, a simbologia relacionada com o poder é reduzida à fragilidade do próprio objecto, construído em cartão de embalagem. A escolha deste material para a construção do trabalho prende-se com o facto de o papel ser exactamente o suporte sob o qual se edificou o discurso que sustenta os ditos monumentos. A duplicação do discurso, através da ilusória duplicação das obras, poderá ser lida como um comentário à dimensão retórica, muitas vezes oca, impregnada na tradição da escultura.

            A grande instalação que habita o primeiro andar, com as já referidas esculturas que referenciam obras de arte preexistentes, é construída inteiramente com sacos de plástico negros e fita adesiva. Estes materiais, produtos derivados do petróleo, fazem parecer que tudo está coberto por uma espessa camada de crude. A alusão ao crude, petróleo em bruto antes de ser refinado, deve-se também ao facto deste ser um elemento fóssil, o qual necessita que se escave para que seja acessível. É exactamente este movimento de escavação, do retirar das camadas superficiais, que interessa a Valdez Cardoso. Essa libertação permite-lhe concentrar-se no lado da significação, conceptualização e da crítica. O apagar das características específicas de cada elemento da escultura coloca os trabalhos sob uma acção rígida de significação, semelhante às estruturas que imperavam a feitura das obras que cita.

            A maneira como este artista se relaciona com a escultura põe em questão os limites e fundamentos da estrutura da própria disciplina. Situa, desta forma, o seu trabalho naquilo que Rosalind Krauss definiu como o campo expandido da escultura.

Filipa Oliveira

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