VIAGEM AO CORAÇÃO DAS TREVAS de Nuno Faria

OS RECURSOS DO MÉTODO DE PEDRO VALDEZ CARDOSO de João Pinharanda

AD GLORIAM EPHEMERAM de João Pinharanda

SIGHTSEEING de Bruno Leitão


À LA CARTE de Bruno Leitão


OBJECTOS QUEER de José António Fernandes Dias

ENTREVISTA (CROSS-CULTURAL) de Lúcia Marques

QUARTO SEM VISTA de João Miguel Fernandes Jorge


O PESO DA HISTÓRIA@MNSR de Fátima Lambert


UMA CONVERSA CRUA de Hugo Dinis


MUNDOS INQUIETANTES de Xosé M. Buxán Bran


THE ORDER OF TODAY IS
THE DISORDER OF TOMORROW de Luísa Soares de Oliveira


CRUDE de Filipa Oliveira


MEMÓRIAS DOS ACTOS de Sandra Vieira Jürgens

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OS RECURSOS DO MÉTODO DE PEDRO VALDEZ CARDOSO

1.
           Muitas vezes é necessário começar logo pelo título escolhido pelos artistas para a apresentação do seu trabalho. Aqui, rapidamente percebemos que o título escolhido tem múltiplas leituras. Pedro Valdez Cardoso copia (seria melhor usarmos o termo híbrido "faz copy/paste" da linguagem do computador para alcançarmos o real significado desta opção) um dos mais famosos tratados de filosofia do conhecimento deixando de fora, por universalmente desnecessária, a identificação do seu autor.

           Tal escolha apenas pode ser entendida como uma ironia. O artista, como todos nós, tem um método (de trabalho, de organização e exposição do conhecimento). Ao pretender que objectos (artísticos) possam ser apresentados como elementos de um "Discurso do Método" o artista substitui o lugar primordial da palavra como veículo do pensamento pelo da imagem – e este é um primeiro desvio de sentidos ao método de Descartes... Mais ainda: compara as imagens que compõem o corpus da exposição a elementos de um raciocínio verbal. Ora, essas imagens/objectos nada têm a ver com os conteúdos ou sequer o espírito do pensamento de Descartes - não podiam, sequer, servir de "ilustrações" didácticas a essas ideias. Já não se trata de um desvio, mas de uma sabotagem. Nesse sentido, o artista faz uma segunda citação que deixa escondida: a famosa obra "O Erro de Descartes", onde o neurologista luso-americano António Damásio deixa provada a dupla contribuição da Razão e da Emoção para a compreensão do Mundo, formação do pensamento e determinação da acção.

           Pedro Valdez Cardoso, ao apropriar-se ainda deste recente (mas também já famoso) título, integra as estratégias de citação e deslocalização de significados necessários à arte actual, onde tudo (ou quase tudo) existe já antes de ser pensado por cada um de nós individualmente ou pelo conjunto de um grupo social ou cultural. O título é aqui, também, uma citação que, por deslocalização, se cola como uma pele estranha aos corpos que refere; mas que passa a fazer sentido precisamente a partir desse "erro" assumido.

           A verdade é que, na conjuntura actual, tudo existe já e continuará a existir, independentemente de ser pensado; tudo é banal e se banaliza a partir do momento mesmo em que se massifica a sua comunicação, tudo pode ser citado sem ser conhecido e, ainda assim, integrar um sistema (imediatamente eficaz, globalmente reconhecido) de novos objectos de pensamento, acção, produção...

2.
           O trabalho de Pedro Valdez Cardoso existe, de um modo ostensivo, a partir do já existente. A sua escultura constrói-se por colagem (associação ou agregação) de elementos autónomos (como nos ensinou a escultura helenística, depois barroca e, finalmente, modernista) e/ou apropriação de formas encontradas (como nos deram o dadaísmo e o surrealismo) e não por modelagem de pastas moles ou escavação de blocos de matérias duras para obtenção por cópia "à vista" de figuras unas. A obra de Valdez Cardoso não existe como acumulação ou soma de elementos idênticos entre si que depois conduzem ao modelo fiel ou distorcido de um objecto ou a uma deriva decorativa. A sua escultura existe por mimetismo de objectos/conjuntos de objectos reais e assemblage, evita a alteração de escalas mas não a dimensão absurda (neo-dadaísta) das inter-relações de elementos.

           As coisas que vemos parecem reais mas são falsas, constroem-se de materiais diversos dos originais e inadequados à funcionalidade dos objectos reais – são obras-sem-função-real, integram a categoria dos objectos simbólicos, das obras-de-arte. Singelas "cópias" ou em assemblage existem, também, como ilusão – ou seja, falseiam, geralmente por camuflagem dos revestimentos, a realidade das próprias formas iniciais, umas vezes simulando cor ou brilho, as mais das vezes boicotando-os com texturas falsas e padrões impossíveis. São obras que usam os seus próprios modelos para construir novos significados e, nesse sentido, cada uma delas (forma/materiais/título) é um depoimento artístico, social e político.

3.
           Nesse vasto conjunto de objectos (a obra de Pedro Valdez Cardoso é extremamente prolífera) os temas vêm do real quotidiano contemporâneo, da história da arte, da reflexão histórico-social e da ficção literária, constituindo-se como universo visual em expansão, espécie de listagem de possibilidades de uma realidade narrativa paralela, realmente cenográfica e teatral, onde a maioria dos objectos poderiam ser usados como adereços de cena.

           Os actores somos nós ou nós que os imaginamos em palco, a sucessão de títulos das peças vai-nos dando pistas para a acção: genericamente, o corpo e a sexualidade, a vida e a sobrevivência, a vontade e a morte; especificamente, os poderes e os contra-poderes no teatro do mundo criado pelo domínio do Ocidente sobre o resto do mundo e sobre si mesmo através do capitalismo, dos colonialismos, do militarismo, da desagregação dos laços sociais, da homofobia, do desastre ecológico...

           A estratégia a que nos conduzem as soluções plásticas encontradas (a "mudança de aspecto" das coisas) é determinada por exercícios de humor crítico e ironias de segundo grau, que interpelam o espectador e o conduzem, por reflexões paralelas aos objectos apresentados, a complementar o discurso do artista.

4.
           Vimos que esta exposição começa por ser irónica no título geral, e que prossegue a sua vocação crítica em cada uma das peças seleccionadas e nas relações que entre elas se podem estabelecer.

           Sightseeing desmonta (cobrindo uma palmeira quebrada de um verde quase negro e incorporando nessa superfície frases citadas de utopias individuais e colectivas recolhidas de graffiti urbanos) os clichés da paisagem paradisíaca, com tudo o que isso tem de construção ideológica eurocêntrica. Do mesmo modo, Gueto, um conjunto de ninhos sobreacumulados e cobertos de cimento cinza, reforçam o valor histórico e social da palavra que lhe dá título.

           Notemos que a monocromia (ou a bicromia de alguns padrões) domina as obras de Valdez Cardoso, acentuando valores semânticos das peças e dos títulos. Em Nowadays everything looks pretty much the same, por exemplo, o vaso suspenso num sistema de macramé (negro) acentua o valor da crítica à mediania de gosto da pequena e média burguesia urbana e ao abuso de uma mísera natureza doméstica - a técnica, recolhida dos árabes, é usada tanto pela marinhagem como pela sociedade vitoriana; tal como a ganga foi apropriada, nos anos 70 do século passado, pela cultura alternativa hippie, referindo hoje um gosto universal e transcultural. Do mesmo modo, o branco absoluto de No Man's Land agrava (parecendo que o retira) o drama dos sem-abrigo nas cidades actuais. Ou a mochila clara (creme), pesada (chama-se Fardo), que podemos associar a uma viagem, a uma guerra, a uma fuga... Referida a uma peça dos anos de 1960, de Claes Oldenburg, encontra-se cheia de "pedras", símbolo de edificação e sedentarização que contraria o nomadismo indiciado pela mochila.

           Guilt remete-nos de novo para a tomada de consciência da natureza destruída: pássaros recortados em tecido negro compõem a obra que é, tautologicamente, a própria palavra que lemos/vemos. Também Framed I, que integra uma série de mapas de zonas coloniais (admitindo o colorido), nos obriga a um confronto directo, não com uma palavra mas com uma imagem previamente registada: os mapas ocupam o lugar de um espelho emoldurado (framed) pelo que, ao olharmos cada peça, estamos a ver-nos para além do rosto, como seres históricos (colonizadores ou colonizados).

           Das peças que restam nesta pequena selecção, Lodo, citando directamente a obra "Coração das Trevas", livro axial de Joseph Conrad (aliás vastamente referido pelo artista no seu trabalho), é das mais significativas, pela riqueza de sentidos que nasce da própria citação, referindo uma obra onde o Homem enfrenta o seu Destino de um modo radical, solitário perante a Natureza e pelo modo como a apresenta, inteiramente destruída, de impossível leitura, obrigando-nos ao exercício da memória culta dessa leitura.

           Finalmente, Discurso do Método (que, como título da exposição, já analisámos) é uma nova citação/tautologia, na medida em que se aplica a uma cópia do famoso busto de Descartes. Porém, os adereços urbanos e paródicos que o acompanham propõem não uma homenagem mas uma actualização amnésica: ao mesmo tempo que, no título, recorda uma realidade histórico-cultural, no trabalho de assemblage Valdez Cardoso tem uma prática iconoclasta sem remissão, usando a figura não como emanação séria do "Discurso do Método" mas como manequim carnavalesco de "O Erro de Descartes".

5.
           No final, percebemos os fundamentos do "discurso do método" criador de Pedro Valdez Cardoso. Ele torna-nos conscientes de que a realidade com que lidamos nos pré-existe; no caso, como artista, parte de experiências acumuladas fora e antes de si. Assim, os recursos do seu método (objectos e palavras, imagens e ideias) são, já vimos, encontrados no real, apropriados do real, devolvidos ao real.

           Nesse processo de citação/distorção, na sua sucessão e encadeamento, não tem que haver nem lógicas dedutivas nem dominantes racionais e idealistas. O artista usa objectos e materiais que associa a ideias. A partir de elementos prévios constrói objectos novos; a partir da recomposição do real exterior estabelece as suas ideias. O encadeamento de ambos (objectos e ideias) estabelece uma energia expansiva, desenha livres cursos de associação e conexão, flutuações, pluralidades, fluxos subjectivos impossíveis de enquadrar num método.

João Pinharanda
Lagos, 19 de Agosto de 2013

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