VIAGEM AO CORAÇÃO DAS TREVAS de Nuno Faria

OS RECURSOS DO MÉTODO DE PEDRO VALDEZ CARDOSO de João Pinharanda

AD GLORIAM EPHEMERAM de João Pinharanda

SIGHTSEEING de Bruno Leitão

À LA CARTE de Bruno Leitão

OBJECTOS QUEER de José António Fernandes Dias

ENTREVISTA (CROSS-CULTURAL) de Lúcia Marques

QUARTO SEM VISTA de João Miguel Fernandes Jorge


O PESO DA HISTÓRIA@MNSR de Fátima Lambert


UMA CONVERSA CRUA de Hugo Dinis


MUNDOS INQUIETANTES de Xosé M. Buxán Bran

THE ORDER OF TODAY IS
THE DISORDER OF TOMORROW de Luísa Soares de Oliveira


CRUDE de Filipa Oliveira


MEMÓRIAS DOS ACTOS de Sandra Vieira Jürgens


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THE ORDER OF TODAY IS THE DISORDER OF TOMORROW

            Formalmente, as instalações de Pedro Valdez Cardoso costumam estabelecer uma relação exemplar com o espaço, por um lado, e caracterizar-se pela precaridade dos materiais utilizados. “The order of today is the disorder of tomorrow” não escapa a estas normas: uma peça de grande formato ocupa o espaço na sua quase totalidade, mas ela é feita de tecido (embora com uma estrutura em madeira) e cabeleiras postiças, entre outras coisas; em suma, de tudo o que não associamos habitualmente à escultura ou à obra de arte tridimensional. Tudo nela convoca a sensação de fragilidade e a riqueza decorativa, qualidades que estão longe da vocação eterna da pedra ou do metal e do puritanismo branco da obra moderna.

            A peça, feita especificamente para esta exposição, partiu de uma reflexão sobre a história económica e social de S. João da Madeira. A cidade ligada às indústrias dos acessórios de vestuário, onde a confecção de chapéus, por exemplo, tem hoje o seu museu, ou a de sapatos se diversifica numa produção de luxo de nível internacional, serviu ao artista para reflectir sobre a ambivalente importância e precaridade destes símbolos do status social. Ainda não há muitas décadas que as classes sociais se diferenciavam facilmente pelo traje, e estava-lhes implicitamente vedado, por regras escritas e tão rígidas como todas as outras leis, o uso de determinados materiais e cores, sob pena de multas e castigos diversos que variaram consoante a época. Se hoje estas regras caíram em desuso, o traje continua a servir para distinguir grupos sociais, etários e profissionais. Com outros elementos relacionados com o comportamento e o falar (mas que se ligam sempre intimamente com o corpo e a sua imagem), esta representação que cada um constrói, e que cada grupo social imagina acaba sempre por reflectir as subtis mudanças da história, tanto como os percalços da vida pessoal de cada indivídio.

            O título da peça alude a uma frase atribuída ao revolucionário francês Saint-Just (1767-1794), que foi companheiro e admirador de Robespierre. Tal como este, Saint-Just defendeu activamente a necessidade daquele que ficou conhecido como o período do Terror, e acabou ele próprio guilhotinado quando esses tempos de excessos e de execuções capitais quase diárias acabaram por serenar e ser condenados pela sociedade francesa saída de 1789. A mudança histórica, a versatilidade dos conceitos fundamentais de verdade e justiça ou, mais genericamente, aquilo que entendemos como o Belo e o Bom são expostos através da ironia subtil de uma guilhotina feita num material tão frágil como o tecido e de cabeças que não são imagens das nossas, mas representam os nossos parentes distantes, os símios. Além disso, há também a própria frase que dá o nome à peça: nunca se provou que tivesse sido efectivamente proferida por Saint-Just; o facto de a aceitarmos como tal pode também ser um logro, já que nunca poderemos invocar a certidão da verdade histórica para a certificar.

            Tal como acontece nesta obra, o trabalho de Pedro Valdez Cardoso assenta sempre neste questionamento dos fundamentos da história ocidental. Em peças mais antigas, debruçou-se sobre o período dos Descobrimentos ou a ocupação colonial de África. Aqui, trata-se da época da Revolução Francesa, fundadora da modernidade histórica e da contemporaneidade social. Substituindo a velha ordem feudal por uma nova, assente na acumulação da riqueza através do trabalho – e, por isso, lançando já as bases da moderna Revolução Industrial -, colocando a burguesia à frente dos destinos das nações europeias em substituição da velha nobreza de sangue, o século XVIII que é retratado em “The order of today is the disorder of tomorrow” é uma época que também ela se desagrega, sujeita à precaridade da matéria-prima que a compõe ou, ainda, à fragilidade do papel através do qual se representam os brasões de armas das velhas famílias feudais. Tudo muda, a ordem transforma-se em desordem, e neste constante devir detectamos já as raízes contaminadas de algo que virá destruir, por sua vez, aquilo que agora é novo.

            E o trabalho do artista, deste artista, consiste em deitar um olhar político, crítico mas melancólico sobre a vacuidade da glória, do triunfo, do poder.

Lisboa, Setembro de 2008
Luísa Soares de Oliveira


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