VIAGEM AO CORAÇÃO DAS TREVAS de Nuno Faria

OS RECURSOS DO MÉTODO DE PEDRO VALDEZ CARDOSO de João Pinharanda

AD GLORIAM EPHEMERAM de João Pinharanda

SIGHTSEEING de Bruno Leitão

À LA CARTE de Bruno Leitão

OBJECTOS QUEER de José António Fernandes Dias

ENTREVISTA (CROSS-CULTURAL) de Lúcia Marques

QUARTO SEM VISTA de João Miguel Fernandes Jorge


O PESO DA HISTÓRIA@MNSR de Fátima Lambert


UMA CONVERSA CRUA de Hugo Dinis


MUNDOS INQUIETANTES de Xosé M. Buxán Bran

THE ORDER OF TODAY IS
THE DISORDER OF TOMORROW de Luísa Soares de Oliveira


CRUDE de Filipa Oliveira


MEMÓRIAS DOS ACTOS de Sandra Vieira Jürgens


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UMA CONVERSA CRUA

ABERTURA

            A redacção de um texto pode congelar um dado ponto de vista sobre aquilo de que trata. Para ultrapassar esta limitação, este texto refugia-se, se não em pequenas irregularidades, pelo menos, em subterfúgios conceptuais questionáveis. Neste sentido, não se cria uma determinada questão pressuposta, mas tenta-se interferir na amplificação da leitura das obras de Pedro Valdez Cardoso. O auxílio precioso do processo de trabalho em discurso directo pelo próprio artista permite o acesso às premissas iniciais da construção das obras bem como colocar essas mesmas premissas em discussão quando os objectos entram em confronto com o espaço público e passam a ser acessíveis aos espectadores.

I ACTO - PELE

Makes me stop before I begin,
'Cause I've got you under my skin

Cole Porter (1956)

            Definindo pele como uma camada de tecido que cobre a superfície dos corpos, desempenhando a função de proteger o seu interior de agressões exteriores, que também expele as toxinas indesejadas, pode-se referir que este órgão delimita, permite ou recusa as relações com aquilo que não nos pertence e que está fora de nós. Ao mesmo tempo, a pele determina o visível dos objectos. Deste modo, é através dela que, numa primeira perspectiva e em muitos casos a única, se julga e avalia aquilo que vemos. A sua aparência é de uma importância determinista do que pode ser dito sobre aquele objecto, fazendo com que este seja diferente do outro. A particularidade a que a pele está associada – caso da impressão digital – é um elemento identificador da especificidade dos objectos. Relacionar a pele com o revestimento é resgatar as premissas da arte dita feminina, processo que reivindicava para si um espaço de poder no meio artístico de vanguarda. Restaurar este processo para o trabalho masculino é questionar as regras ainda vigentes e destabilizar o género feminino e o género masculino ainda estabelecidos.

HD: Na obra Feeding my beast (2008) surge a definição de pele. As tuas obras são revestidas por uma única camada específica, por exemplo: tecido, papel, plástico, fita, etc. Como é que determinas o revestimento das obras? Como estabeleces a relação entre o objecto e o seu revestimento?
PVC: Às vezes acontece ao contrário. Por exemplo, o tecido toile de jouy que usei no projecto Jogos de Caça (2007) é um tecido que eu gosto particularmente e decidi fazer uma pesquisa sobre a sua origem. Este tecido sempre foi usado – e ainda é – na cultura ocidental como representativo do bom gosto francês mas, na verdade, surge na Índia. Isso foi muito interessante porque é mais uma questão de poder cultural, de uma cultura que tem mais força e que acaba por se apropriar ou subjugar a outra. Isso fez com que levasse à ideia dos troféus e dos brasões. Portanto, foi a partir do tecido que desenvolvi as peças. Embora na maioria das vezes surge primeiro o conceito da peça e só posteriormente o material. Se a decisão é em tecido, aí o tecido tem que ter uma carga em si, tem que ter um discurso criticamente implicado, ou seja, não uso determinado tecido com base no gosto pessoal. A história do tecido ou o discurso a que está ligado, seja por um referente histórico, seja por um referente mais popular, é sempre muito importante. Por vezes, descubro, como no caso do Peso da História (2007), que a fita sugere a ideia de bronze, o que fazia todo o sentido numa peça que pretendia reflectir e criar alguma ironia sobre o conceito de escultura monumental.
Mas esta pele, ao mesmo tempo que anula o objecto que reveste, dá-lhe um novo significado ao colocá-lo noutra posição, mas os objectos não deixam de ser o que são…
Mas perdem um pouco de identidade porque são homogeneizados. A pele coloca tudo ao mesmo nível de leitura e cria um padrão. A pele é superfície e, portanto, é a primeira camada que vês, embora numa observação mais atenta percebas que há coisas por trás.
Deste modo, estabeleces uma relação directa com o espectador. Mise-en-scène (2006) é, obviamente, um monte de lixo, mas quando há uma aproximação o espectador apercebe-se que o lixo está revestido por diferentes tecidos. Se inicialmente apenas se reconhecem os objectos, posteriormente, apesar de não deixarem de ser meros objectos, têm um lado muito luxuoso e muito cuidado. Para além disso, os fios e as costuras também são visíveis, fazem parte do processo…
Isso acentua a ideia de sutura e de construção. É uma ideia que me agrada porque parece algo que não está acabado e, por outro lado, dá um certo lado decadente ao objecto. O aspecto de ruína, que talvez seja um pouco romântica e burguesa…Mas não é uma ruína no sentido da fatalidade, mas no sentido da inevitável deterioração das coisas…
Isso lembra o filme Silêncio dos Inocentes (1991).
É uma das minhas referências.

II ACTO – QUESTÕES

“But sex is politics,” I began… and ended.
Gore Vidal, Sex Is Politics (1979)

            Em Sex Is Politics (1979), publicado na Playboy, Gore Vidal defende que o sexo reivindica para si uma oposição clara ao poder instituído nas diversas civilizações, religiões e governos ao longo da história. Se, como o autor refere, a atitude sexual de qualquer dada sociedade é o resultado de decisões políticas, então, a libertinagem e o que está fora dos cânones morais influencia, e até determina, as alterações políticas necessárias ao controle da sua sociedade. A transgressão não veicula um ponto de vista dogmático sobre uma nova sociedade, mas possibilita a discussão sobre novos modos de ler a história, de nos posicionarmos perante os outros e de questionarmos as relações com algo que poderá deixar de estar à margem.

            Paralelamente à questão sexual existem outras que também permitem esta transgressão: históricas, sociais e raciais. As dúvidas que surgem perante um facto histórico são formas de abalar esse mesmo facto. A arte não é isenta destas interrogações e traz consigo novas formas de uma determinada realidade, permitindo a multiplicidade de pontos de vista e de interpretações.

HD: A tua obra abre questões de diversas ordens: histórica, social, racial e sexual. Contudo, o grau de sofisticação reside no facto de com diferentes preocupações estas questões irem aparecendo e reaparecendo. Não se trata de etiquetar. É, antes, tentar desconstruir vários níveis de camadas. Como é que em cada peça escolhes a questão? É a construção de uma ideia ou vem com o fazer da obra?
PVC: Em primeiro lugar, é uma construção mais lata que tem a ver com o fazer sentido. Não é arte pela arte, ou seja, o discurso artístico da arte sobre si mesma, que também pode acontecer mas que para mim faz menos sentido. E depois cada situação é uma situação específica. Normalmente passa por leituras que faço, ou... Enfim, sou um apaixonado por uma série de coisas que não são do campo da arte maior, se quiseres, como as artes decorativas. Eu adoro artes decorativas (risos), do mesmo modo que adoro pintura de natureza-morta, um género considerado menor dentro da história da pintura.
Resgatas o decorativo para uma arte mais elitista?
Sim. Depois construo algo que tenha um discurso contemporâneo, um discurso crítico, porque quero que faça sentido. Mas ao mesmo tempo quero ter as referências a estes elementos pelos quais tenho uma paixão.
Esse sentido crítico faz-se notar nas peças que focam a questão social: Mise-en-scène (2006), Jogos de Caça (2007), S/título (L’Hussard, após T. Gericault) (2007) e Dead Man Walk (2008). Nestas obras existe uma questão meio-cínica, porque nunca te posicionas com uma ideia dogmática sobre o que está a acontecer no mundo contemporâneo onde vivemos e que de facto nos toca particularmente. Chamo, aqui, uma posição meio-cínica, porque apenas obrigas o espectador a questionar as suas próprias ideias sem expores nenhuma ideia pessoal como alternativa.
Acho necessário ser afirmativo sem cair na imposição. Questionar sem tomar partido. Se é para tomar uma posição, creio que há outras áreas muito mais específicas em que podes trabalhar.
Interessa-te essa posição de meio-termo?
O que me interessa sobretudo é não cair no campo problemático da bandeira, ou seja, da arte panfletária. Normalmente todo o tipo de trabalho artístico que está associado a questões politicamente aplicadas ou sociais, ou das minorias, que os meus trabalhos também vão focando, é uma arte muito mais dura, eu diria mesmo reprimida. Reprimida, porque é uma arte que para se tornar séria, priva-se de tudo o que possa ser decorativo e tudo o que possa ser visualmente mais exuberante ou estimulante.
Quando constróis as peças sentes o caminho que deves seguir para não caíres nesse lado panfletário, ou maniqueísta? Consegues gerir o momento em que a obra é subtilmente aquilo que queres dizer sem tomares um ponto de vista?
Sim, às vezes, tenho cuidado com o título da peça. Quando acho que a peça, por si só, já é suficientemente referente tento que o título seja mais subjectivo ou que o título tenha outra poética que possa diluir a questão. Mas acho que é o facto de as obras serem tão marcadas visualmente que quebra com isso, nunca chegam a ser panfletárias, porque há este lado do desejo, do jogo de sedução do espectador. Talvez também haja cinismo, porque estás a fazer uma peça que pode falar de coisas terríveis, mas ela é simultaneamente sedutora.
I didn’t choose never to forget (2005), Na Sombra (2006) e Ugly (2009) são obras muito subtis. A questão interessa porque podiam ser verdadeiramente panfletárias sobre os direitos homossexuais. A subtileza destas peças associa-se ao “the loves that dares not tell its name” de Lord Alfred Douglas. Estas obras escondem e fecham em si a questão, auxiliadas pela sua imagem luxuosa e sedutora. O espectador encanta-se e incorpora aquele espírito e, só posteriormente, se apercebe...
Acho que isso é o que entendo como perversão da aparência. No fundo, o meu trabalho é sobre a aparência das coisas. Se fosse um filme, seria um drama burguês (risos).

III ACTO – ESPAÇOS ESPECÍFICOS

Tudo quanto neste lugar eu fazia de inútil
subiu-me então à garganta, e só tinha uma
pressa: acabar com isto e voltar à minha
cela, onde ia poder dormir.
Albert Camus, O Estrangeiro (1942)

           O Sr. Mersault, narrador da obra O Estrangeiro (1942) de Camus, em pleno tribunal, prefere o lugar seguro da sua cela ao ouvir a acusação que recai sobre si. A descrição da sua vida torna-se demasiado penosa e nem mesmo a sua distância sentimental perante os outros o impede de se sentir desconfortável. Os espaços públicos são sempre inseguros, pois é neles que somos expostos aos outros. Nesse confronto encontramos muito mais respostas sobre nós e sobre o nosso próprio espaço em detrimento do que esperamos sobre o outro e sobre o espaço que esse ocupa. As nossas crenças – políticas, religiosas, sociais ou históricas – podem ser abaladas pelo contexto externo em que são avaliadas ou julgadas.

            Em Sculpture in the Expanded Field (1978) Rosalind Krauss sugere, após uma revisitação histórica sobre a escultura desde a década de 50, que o espaço da escultura deve sempre referir-se ao espaço físico que a rodeia – entenda-se arquitectura – o site-specific. De facto, não é forçado afirmar que o campo expandido poderá também reflectir para o contexto social, político e histórico, ou seja, um espaço vivido que, não sendo puramente defendido pela autora, o seu texto a isso deu abertura. Nesta medida, os espaços que as obras de arte ocupam são espaços não seguros que se abrem à discussão, porque estão sujeitos às reinterpretações dos diversos intervenientes, que questionam e refutam as premissas propostas valorizando, deste modo, o conhecimento sobre o local e sobre a própria obra.

HD: Nas exposições MEMÓRIAS DOS ACTOS (2006) no Centro Cultural Emmerico Nunes em Sines, Peso da História (2007) no Museu da Presidência em Lisboa, The order of today is the disorder of tomorrow (2008) no Centro de Arte de S. João da Madeira e Resort (2009), na Artadentro em Faro, por exemplo, existiu uma preocupação em relacionar as obras com os espaços onde foram apresentadas? E em Óbidos quais as relações que estabeleceste com o local?
PVC: Tenho essa preocupação sempre que o espaço não é white cube e sempre que se trata de uma “encomenda”. No caso de Óbidos a minha preocupação foi seleccionar peças que pudessem jogar com o contexto da vila medieval de estrutura militar. Interessava-me ter peças que se relacionassem com essa imagética e que jogassem com possíveis leituras historicistas. No caso de Sines o espaço era um castelo onde tinha vivido o Vasco da Gama e, portanto, a peça reportava-se aos descobrimentos e à Índia. Em S. João da Madeira existe uma forte indústria associada ao vestuário e, na altura, uma situação de política cultural complicada ligada à própria estrutura do centro de arte e, portanto, havia todo um jogo de poder e aparência à volta daquela região. E isso fez com que eu, que na altura estava a ler um livro sobre a Marie Antoinette, pegasse na revolução francesa. Por vezes as coisas não surgem tanto da procura, surgem mais do quotidiano ou, se quiseres, do acaso. Tenho cadernos com apontamentos quase diários de coisas que gosto e sobre as quais quero trabalhar, mas que apenas utilizo quando fazem sentido. Num determinado momento tudo se conjuga e consegues fazer o puzzle.
Na tradição do site-specific e do place- ou context-specific, existe uma relação muito evidente no modo como as tuas obras interagem com o público: a tridimensionalidade; a colocação a meio da sala; e a ausência de plinto. A coexistência no mesmo espaço do chão das obras e do espectador determina um espaço de vivência de ambos. O plano da escultura estende-se, sobretudo quando as obras podem ser, literalmente, percorridas. Em Mise-en-scène (2006) e I didn’t choose never to forget (2005) não havia nenhuma barreira clara entre os objectos e o espectador existindo, à primeira vista, um lado confortável. Posteriormente, quando caminhamos por esse espaço torna-se desagradável. Creio que isto se liga a uma habilidade cénica de teatro. Tentas jogar com esse espaço e com a relação que ambos estabelecem?
Sim. Se for instalação há a tentativa de criar um ambiente onde podes jogar com a ideia do espaço cénico. Quando é uma escultura acho que isso acontece por consequência. Penso sempre como a obra vai ser recebida e como é que a obra vai funcionar no espaço e com a interacção física do público.
Quando as peças são de parede, que é um problema da pintura, mas também da escultura, existe um confronto. As obras já não estão no nosso espaço natural, porque é um espaço vertical, mas também existe uma relação directa com o espectador.
Eu não sou muito um artista de parede. As minhas peças de parede começam sempre por coisas que já são à partida de parede, ou seja, em que esse é o lugar natural da sua existência e do nosso conhecimento sobre elas.
E o In the Dark (2007)?
O In the Dark (2007) é um ramo de folhas de plantas exóticas que está colocado na parede numa situação de altar. Aqui tem muito a ver com essa ideia de sagrado e por isso é que foi posto na parede. O chão é o meu espaço preferencial de trabalho. A parede é o espaço da contemplação o chão é o da existência, o que o torna mais real ao ser um espaço de acção.

FECHO

ESTRAGON: Why don't we hang ourselves?
VLADIMIR: With what?
ESTRAGON: You haven't got a bit of rope?
VLADIMIR: No.
ESTRAGON: Then we can't.
Silence.
Samuel Becket, Waiting for Godot (1952)

            Estragon e Vladimir esperam por Godot perto de uma árvore moribunda. Nos seus diálogos sobre a vida caminham para lado nenhum, talvez para o inevitável fim, tal como aquela inútil árvore. Neste não-lugar, conceito de Marc Augé, legitima-se a possibilidade de questionarem a sua vida, o seu papel e os seus feitos e, sobretudo, de questionarem o outro, as diferenças que os separam e as semelhanças que os aproximam. Esta análise sobre as suas histórias extrapola o drama encenado para uma acutilante visão sobre a inevitabilidade do fim e da morte.

HD: Em muitas peças existe um lado dramático no sentido em que é encenado. Mesmo que sejam questões históricas que regressam ao quotidiano ou questões sobre o outro, são sempre, voltando também ao cinismo, transmitidas de uma forma trágica, quase melancólica…
PVC: Como numa pintura de natureza-morta, mas com uma aparência de inevitável deterioração. É a acção do tempo sobre as coisas. Se quiseres, é o processo inverso ao da natureza-morta, mas recorrendo à mesma estratégia de barroquismo e exuberância acumulativa.
A peça S/ título (Baldio) (2005) traz algo de amargo e nostálgico que se relaciona com um não-lugar. Estes lugares de passagem são sítios em que te encontras vulnerável ao novo e onde as tuas dúvidas são questionáveis. Perante as tuas obras agrada-te a ideia de serem sítios de eleição para o pessimismo trágico do fim?
Não sei, por um lado agrada-me. Mas não olho numa perspectiva do trágico, olho talvez com algum cinismo. As coisas deixam sempre de existir, é ser pragmático.
Mas é por isso que vais resgatar a história, por exemplo?
A história está mais ligada com a questão dos poderes que tem a ver com a verdade histórica. A história é uma série de factos que tomamos como certos e que muitos deles foram relativizados.
A história é construída por vencedores.
E tem muito de ficção. Tento ironizar e/ou subverter o conceito de verdade, que é muito mais abstracto do que se possa julgar.
Creio que é mais verdadeiro a multiplicação de ideias sobre o mesmo objecto, do que propriamente uma única ideia, mesmo que seja a mais correcta. Nas tuas obras quando há a proliferação de conhecimentos sobre aquele mesmo objecto é muito mais verdade do que qualquer ponto de vista, mesmo que seja o teu. A história, tal como as tuas obras, é decadente se começamos a perceber em que momentos foi deturpada…
Apagada ou refeita…

Hugo Dinis
Lisboa, Fevereiro 2010

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